texto por Adriana Facina (antropóloga, professora de História na UFF e coordenadora do Observatório da Indústria Cultural – Oicult) / Fotos por Ratão Diniz
Quando vi o documentário “As Muitas Faces de Uma Cidade”, de Danilo Georges e Mano Zeu, pela primeira vez na semana passada, na cópia que eles me enviaram pelo correio, eu estava sem luz em casa, ilhada, mas ainda sem saber exatamente o que havia acontecido em minha cidade, Niterói. A bateria do computador acabou antes do fim do filme e tive de esperar até o dia seguinte para terminar de assisti-lo. Quando a luz voltou, enquanto eu ouvia as notícias sobre os mortos e desabrigados na televisão, via na tela do computador o trecho em que eram mostradas as enchentes e as pessoas que perdiam tudo nas periferias de Foz do Iguaçu. As mesmas histórias em cenários diferentes. Um desespero me invadiu a princípio, um sentimento de revolta impotente, uma raiva.
Assista ao trailer do documentário:
Mas, após desespero, me veio uma ponta de esperança de que essas semelhanças possam ser a raiz para a construção de um novo mundo a ser erguido pelos oprimidos, pelos pobres, pretos, favelados, com sua força de sempre resistir e reconstruir, sua cultura, sua fé na vida. Aliás, se tem uma coisa que é tipicamente favelada é a fé na vida, que vem daquela certeza que se adquire quando se sobrevive a um sofrimento muito grande: eu sobrevivo, “já passei por quase tudo nessa vida”, como diria Zeca Pagodinho e, por isso, não tenho medo de “deixar a vida me levar”.
No Rio, a reação imediata das autoridades públicas foi culpabilizar os pobres. Usando a desgraça alheia para impor a agenda das remoções almejadas pela especulação imobiliária, o prefeito Eduardo Paes lançou decreto permitindo o uso de força policial para remover moradores de áreas de risco, o que abrange quase toda a cidade. Anunciou ainda a remoção imediata de uma das favelas mais tradicionais da cidade, o Morro dos Prazeres, localizado em região de grande valor imobiliário, e de mais uma dezena de outras a curto prazo. O governador Sérgio Cabral, o mesmo que acusou as mães da favela da Rocinha de serem fábricas de marginais, disse que as pessoas tem de se convencer a não construir moradias nas encostas e ainda culpou aqueles que foram contra os muros que ele mandou erguer para cercar as favelas e impedir sua expansão.
Na minha cidade, onde até o momento foram encontrados mais de 150 corpos e há milhares de desabrigados, o prefeito e seu secretário de obras, fiéis escudeiros de uma especulação imobiliária irrefreada que há anos vem depredando a cidade, também apontaram seus dedos em direção daqueles que morreram ou perderam tudo: suas casas, seus documentos, seus entes queridos, sua história.
Talvez o impacto dessa reação daqueles que deveriam ser os primeiros a demonstrarem sua solidariedade às vítimas seja tão profundo e de longo prazo quanto as mortes e toda a devastação que suas sucessivas administrações causaram. Isso porque suas declarações explicitaram e legitimaram algo que vinha se impondo na surdina e sem alarde e, agora, com a máscara de um cinismo que há muito não se via: a imposição de um modelo de cidade que não considera a favela como território cidadão. Mal a ser extirpado ou empurrado para fora do mapa das áreas interessantes para a especulação imobiliária, a favela volta a ser alvo das antigas políticas de remoção que desconsideram algo que o documentário afirma, bem como a cultura que brota desses territórios: Favela é cidade!
Como diz a música do Rappa, o Rio de Janeiro todo é uma favela. Podemos dizer que o Brasil todo é uma favela e, em breve tempo, na visão de Mike Davis, autor do livro Planeta Favela, a maior parte da população mundial será formada por favelados.
Além de um crime contra os direitos humanos, um absurdo constitucional, um abuso de poder político e econômico, a remoção é também um atentado cultural. Como o documentário prova, as favelas e perferias são, e não é de hoje, os locais de onde surgem manifestações culturais potentes e que traduzem na forma de arte experiências coletivas de vida, de resistência, de formas de organização social, de valores como a solidariedade (que se expressa, por ex., nos mutirões. Agora mesmo na tragédia, os bombeiros reconhecem que a atuação dos moradores na remoção das vítimas dos deslizamentos de terra foi fundamental). Da favela nasce o samba, o hip hop, o funk, o grafite, o reggae, o break. Na favela se abrigou o jongo, bem como todos os batuques negros perseguidos secularmente e que assim chegaram ao século XXI. As favelas pulsam, fervilham, cheias de vida gerada por aqueles que vivem todo o tempo sob ameaça: seja da polícia, do descaso dos governantes, de políticas públicas que vêm essas áreas como laboratórios para o urbanismo, para a segurança pública etc. Favela é cultura!